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Finanças Pessoais

10 de setembro de 2022

14 Minutos de leitura

Liberdade financeira na teoria e prática

 

”A maioria dos erros da vida é causada pelo esquecimento do que realmente se está tentando fazer” (Charlie Munger)

 

Que me desculpem os teóricos, mas eu prefiro pensar em liberdade financeira de outra forma.

 

Vamos lá, às vezes você persegue uma coisa com afinco por meses e anos. Na verdade, você faz isso com tanta persistência, tanta intensidade, que quando alguém pergunta o que você está fazendo, você meio que não consegue dar uma resposta plausível. Você até sabe o que precisa responder, mas talvez não saiba como explicar. Se, por ironia do destino, eu não tiver sido claro o suficiente até aqui, vou deixar uma breve história. A priori ela pode parecer superficial, mas, siga aqui comigo, pois há várias camadas de profundidade.

 

A parábola da liberdade financeira

 

Pois bem. Um homem de negócios estava passando suas férias com a família numa pequena vila de pescadores, ou melhor, uma praia paradisíaca. Após se ver estressado com o recebimento de um telefonema em pleno momento de sossego, ele saiu da pousada pra esfriar a cabeça. Foi nesse momento que observou um pescador voltando do mar com um pequeno barco acompanhado de uma penca de peixes frescos.

 

Fascinado pela beleza dos peixes, o “businessman” se aproximou para parabenizar o pescador e se viu perguntando quanto tempo ele levou para pescá-los. “Só um tempinho”, respondeu o homem simples com uma voz aconchegante. Intrigado com a resposta um tanto vaga, o executivo perguntou institivamente: “Então o que você faz com o resto do seu tempo?”.

 

Em um tom calmo e relaxado, o pescador respondeu sorrindo: “brinco com meus filhos, tiro uma soneca…”. Fez uma pequena pausa antes de continuar: “No fim da tarde, gosto de dar uma caminhada na praia com minha esposa e tocar violão com meus amigos vendo o pôr do sol…”.

 

A resposta do executivo veio por reflexo, mas em tom de conselho, justamente como costuma fazer quando um jovem pergunta algo no trabalho: “Olha, deixa eu lhe ensinar uma coisa sobre negócios. Você deveria passar mais tempo pescando e tentar vender o peixe que você não consumir. Com o dinheiro extra que vai entrar, você pode comprar um barco maior e, quem sabe, empregar pessoas. Logo você terá dinheiro suficiente para comprar vários barcos e, eventualmente, abrir uma empresa”.

 

O pescador não reagiu e, diante disso, o executivo continuou: “Veja só… uma vez que sua empresa tenha crescido, você começa a exportar seu peixe. Aí depois você vai estar tão grande que vai poder começar a vender direto pro consumidor, sem intermediário, controlando o produto, o processamento e a distribuição”. Ele se sentiu orgulhoso de seu “business plan” construído em poucos segundos e, por isso, continuou empolgadamente: “Crie uma marca que realce algum desejo e veja em pouco tempo a sua empresa prosperar. É nesse momento que você se muda pra cidade grande e emprega os melhores gerentes do mundo para expandir ainda mais o seu negócio”.

 

Pausa dramática.

 

O pescador pareceu se esforçar pra tirar a expressão risonha que praticamente vivia tatuada em seu rosto. Ele olhou pro céu, respirou fundo, virou novamente pro executivo e falou: “Mas senhor, não me leve a mal, quanto tempo vai levar isso tudo”? Aqui uma pequena pausa poética, pois, em suma, essa foi justamente a pergunta que o executivo tinha feito assim que se conheceram.

 

Mas um bom executivo está acostumado a lidar com esse tipo de pergunta. Falar de futuro é uma zona de conforto pra esse tipo de profissional, ele consegue estabelecer em poucos segundos as valiosas premissas que tornam sua previsão quase sempre infalível. Alguns chamariam de “assumption”, outros de “chute”, mas isso pouco importa, desde que a resposta seja dada com convicção. E a única certeza que eu tenho é que ela está errada.

 

Pois bem, o homem de negócios sempre foi “intenso” em suas conversas de negócios que nessa hora não houve aquele “silêncio desconcertante” no meio do diálogo, em milésimos de segundos, ele colocou a mão direita no queixo e soltou: “quinze a vinte anos, no máximo”. Gênio!

 

Surpreendido com a resposta, o pescador refletiu enquanto retomava o trabalho de tirar os peixes da rede. Por um momento, o executivo pensou que aquela conversa tinha se encerrado. Ou até que o pescador estivesse atrasado para alguma coisa, sendo preciso voltar a trabalhar.

 

O tempo não era um problema, o homem retirava os peixes da rede sem pressa, o executivo não conseguiu segurar o impulso de olhar para o seu Rolex algumas vezes. Ele limpou algumas gotas de suor que desciam pela testa, mas resolveu insistir, talvez o pescador estivesse testando a sua paciência e, naquele momento, ele queria ver até onde aquela conversa ia dar.

 

Como diria Mia Wallace em Pulp Fiction (texto e direção de Quentin Tarantino): “é assim que sabe que encontrou alguém especial. Quando pode calar a boca um minuto e sentir-se à vontade em silêncio”. Não era o caso do executivo, mas as conclusões ficam com você.

 

Prestes a se virar novamente para a pousada e se arrepender de ter dado um conselho valioso a um desconhecido qualquer, o executivo viu o pescador olhar novamente pra ele e dizer: “e depois, o que é que eu faço, senhor?”.

 

O executivo abriu um sorriso. Esse era um dos pontos altos da sua profissão, solucionar problemas, ver os olhos das pessoas brilharem ao serem surpreendidas. Ele respondeu sem pestanejar: “Aí é que vem a grande recompensa!”. Ele fez uma pausa estratégica para a frase surtir efeito e continuou: “Na hora certa você vende as ações de sua empresa e se torna muito, muito rico, com milhões de dólares na sua conta.”

 

Dessa vez a resposta veio cedo: “e o que eu faria com todo esse dinheiro?”

 

– “Você escolhe, mas eu me mudaria para o litoral, dormiria até mais tarde, iria à praia brincar com meus filhos, ou melhor, netos. O que você acha?”

 

– “Mas já não é isso que eu faço hoje, Senhor?”

 

Desconstruindo alguns conceitos

 

Pois bem… quem você acha que tem liberdade financeira, o pescador ou o executivo? É claro que aqui há um exagero intencional, afinal, as parábolas são feitas pra fazer a gente pensar. E, talvez, a maior diferença entre os dois personagens é que um sabe o quanto precisa pra viver e o outro não.

 

Qualquer investidor iniciante sabe o significado de uma reserva financeira para emergências, mas poucos sabem o que significa uma reserva de suficiência. Ou seja, o mínimo necessário está ok, mas qual é o teto? Digo isso, pois se você não tem um teto, a única certeza que eu tenho é que você vai se ver sempre trabalhando mais, acumulando mais, mas sem necessariamente se sentir satisfeito com o que tem.

 

Tem uma música de Eddie Vedder que ilustra muito bem esse ponto: Society.

 

Oh, it’s a mystery to me
We have agreed with which we have a greed
And you think you have to want more than you need
Until you have it all you won’t be free

 

É um mistério para mim
Nós temos uma ambição com a qual concordamos
E você pensa que você tem que querer mais do que precisa
Até você ter tudo, você não estará livre

 

Invista sem um planejamento e se veja querendo mais. Mas não só isso, se veja num estado constante de ansiedade. Digo isso, pois quando a sua cabeça está voltada para o passado, você se torna uma pessoa depressiva. E quando a sua cabeça está voltada para o futuro, você vira um poço de ansiedade.

 

Quem acompanha aqui já sabe, gostamos de pensar em investimentos como um complemento da renda gerada pelo trabalho. Esse vem antes e talvez seja a única forma plausível começar uma jornada de acúmulo de patrimônio no longo prazo. Investir sem trabalhar é o mesmo que chamar os amigos pra jogar futebol e esquecer da bola.

 

Por isso, antes de tudo, é preciso deixar claro aqui a fragilidade do conceito de independência financeira. Em uma rápida pesquisa no google, você vai se deparar com essa definição: “tranquilidade para tomar suas decisões sem ter dúvidas ou preocupações com o quanto vai ter no dia seguinte”. Que os teóricos do mundo financeiro me perdoem, mas isso não se enquadra na vida real. Aqui vem um primeiro questionamento, como alguém poderia tomar decisões desacompanhadas de dúvidas? Ou melhor, se não há dúvida, existe decisão?

 

No dia em que você tomar uma decisão isenta de dúvidas, significa que: (1) você se transformou no mais novo deus grego, mas falta apenas a apoteose; (2) você perdeu a sua essência humana e age como um algoritmo: “se acontecer isso, faça isso”. (3) você se tornou arrogante. Fico com a resposta 3.

 

A dúvida nos acompanha em todas as decisões financeiras, assim como nas decisões da vida, tendo liberdade financeira ou não.

 

E aí você me pergunta: então como deveria ser o conceito de liberdade financeira para você? Pra mim, é o acúmulo de um conjunto de habilidades que te tornam capaz de tomar decisões em que o reflexo financeiro não é o principal fator. Mas isso só vai acontecer se você souber o quanto é suficiente. Liberdade financeira = suficiência.

 

Sendo assim, seja um excelente médico e tenha liberdade financeira, seja um cantor extraordinário e tenha liberdade financeira, jogue futebol melhor que os zagueiros do time adversário e tenha liberdade financeira. Isso é verdade desde que você saiba o que é suficiente e tenha um plano para chegar lá. Do mesmo jeito, seja um executivo fora da curva e tenha liberdade financeira. Você pode ser demitido amanhã, mas se você realmente for fora da curva, em poucos meses vai estar muito bem empregado novamente.

 

Reserva de suficiência e felicidade

 

E aqui vai o principal ponto, você se sente uma pessoa feliz? De acordo com o ranking da felicidade da ONU, os dinamarqueses estão entre os povos mais felizes do mundo. Esse ranking é definido com base em muitas variáveis não necessariamente financeiras, mas, pra mim, o mais interessante dessa cultura – e isso está escrito no livro O Segredo da Dinamarca, que recomendo fortemente – está no fato de que esse povo, em sua grande maioria, sabe o que quer e, de fato, escolhe fazer o que faz.

 

Um gari dinamarquês limpa o lixo todos os dias, pois assim escolheu fazer. Isso mesmo. Ele estudou no mesmo colégio do filho do prefeito da cidade, teve as mesmas oportunidades, mas simplesmente não teve ambição pra montar “a próxima startup que vai disruptar o mundo”. E nos países escandinavos não há problema algum nisso. Afinal, os garis são bem pagos, têm sua casa própria, conseguem se alimentar perfeitamente bem, assim como a sua família e, melhor, seus filhos estudam ou vão estudar na mesma escola que os filhos do prefeito.

 

O gari é “feliz”, pois tem o que precisa, você pode não acreditar, mas ele cresceu num ambiente de liberdade financeira abundante. Afinal, se amanhã ele for demitido, terá estabilidade suficiente para aprender algo, se dedicar e trabalhar com qualquer outro tipo de coisa. Mais uma vez, ele está feliz com o que tem e escolhe fazer o que faz. Isso é liberdade financeira, veja que isso passa bem longe do conceito utópico.

 

Talvez alguns vão dizer que um dos problemas dos países escandinavos é a falta de ambição das pessoas, pois, como eles conseguem viver muito bem com “pouco” – o salário-mínimo de fato garante uma vida digna – não são muitos os que querem se esforçar mais. Ou seja, quanto mais você ganha, maior é o imposto de renda e, como resultado, a diferença entre o mais rico e o mais pobre é muito menor do que nos países emergentes.

 

O contraponto disso é que os dinamarqueses podem se vangloriar de terem criado grandes empresas a nível mundial, assim como startups que competem “ombro a ombro” com as do vale do silício. Melhor de tudo, o país produz riqueza suficiente e lá a produtividade é altíssima.

 

Não há necessariamente falta de ambição no povo, na verdade, há propósito. Você pode ser o melhor CEO de uma grande empresa brasileira e ao mesmo tempo não conseguir dormir bem, viver estressado e se ver depressivo ao ponto de entender na prática o real significado da palavra burnout.

 

A verdade é que intuitivamente nós pensamos em liberdade financeira como a definição de uma pessoa rica. Mas muitas vezes essas pessoas também não sabem o que querem e estão com a “cenourinha na frente”, sem tempo, dormindo mal e trabalhando ainda mais para perseguir aquilo que nunca vão ter, pois não sabem o que é suficiente.

 

Enquanto isso, um garçom de um bar em Bali, está feliz com o que tem e pode sair viajando pelo mundo, inclusive, fazendo bico de barman pelas praias mais paradisíacas que você um dia vai poder pagar pra ver.

 

Por isso, tão importante quanto a sua reserva de emergência é a sua reserva de suficiência. Defina o suficiente hoje e planeje para tal. Pois a única certeza que eu tenho é que se você não tiver um limite bem estabelecido, você vai ansiar por mais.

 

Por fim, ideal fecharmos esse tema reforçando pelo menos duas coisas:

 

  • Liberdade financeira diz menos sobre finanças e mais sobre decisões de vida. Você pode acumular mais do que precisa para poder viver, mas isso não vale nada se você não souber como viver.

 

  • Liberdade financeira diz menos sobre acúmulo de dinheiro e mais sobre acúmulo de habilidades. Aprenda a ser imprescindível no seu ramo e se veja despreocupado se será demitido amanhã.

 

Por fim, o mais importante: razoável > racional. É claro que existe o sentido estrito da liberdade financeira e esse seria o racional. Mas o razoável é muito mais interessante na medida em que extrai do conceito utópico, algo para colocar no papel e executar. As pessoas superestimam investimentos e subestimam o planejamento financeiro. Tenha um, acumule habilidades e busque a liberdade financeira na prática, que pra mim nada mais é do que escolher fazer o que faz, assim como os dinamarqueses. Que os teóricos me desculpem.

 

Por Túlio Cavalcanti

 

DISCLAIMER
Este material foi elaborado pela equipe de análise da Åpen Capital Consultoria de Valores Mobiliários Ltda. (Åpen Capital) e não pode ser reproduzido ou redistribuído para qualquer pessoa, no todo ou em parte, qualquer que seja o propósito, sem o prévio consentimento por escrito da Åpen. As informações contidas neste documento são de caráter meramente informativo, não devendo ser entendidas como análise de valor mobiliário, solicitação de compra e/ou venda ou recomendação de qualquer ativo financeiro ou investimento. A decisão final de alocação cabe exclusivamente ao cliente. O material foi preparado com base em informações públicas, dados desenvolvidos internamente e outras fontes externas. Mesmo com todo o cuidado em sua coleta e manuseio, a Åpen não se responsabiliza pela publicação acidental de dados incorretos. Ademais, não pode ser assegurado que quaisquer metas descritas nesta apresentação permanecerão as mesmas ou que previsões se manterão, tendo em vista as frequentes alterações das condições econômicas e de mercado. A Åpen Capital, seus administradores, sócios e funcionários isentam-se de responsabilidade sobre quaisquer danos resultantes direta ou indiretamente da utilização das informações contidas no material.

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